Conversa com Vítor Lucas, Muge, Salvaterra de Magos
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Registo de conversa mantida pelos investigadores Ana Pascoal e Ricardo Agarez com Vítor Lucas, presidente da Casa do Povo de Muge e da Sociedade Columbófila, que realizou uma visita guiada às instalações e partilhou memórias e factos sobre a história da Casa do Povo de Muge e o pavilhão desportivo anexo. Para além desta visita, teve a amabilidade de nos mostrar outros edifícios da vila, como o antigo posto dos correios, o posto médico e a creche do Centro de Bem-Estar Social de Muge. Muito agradecemos a generosa partilha e a disponibilidade para nos receber.
O edifício da Casa do Povo foi inaugurado em 1963, mas a entidade já existia, tinha sido criada em 1934, foi uma das primeiras casas do povo a ser criada. O primeiro presidente foi um médico que esteve na I Guerra Mundial, era natural da Lousã e casou em Muge, onde se fixou. Nos anos 30, a Casa do Povo desenvolvia atividades como música, clube de jazz, teatro. A Casa do Povo tinha um papel central na vila, a documentação que existe ainda à guarda da associação documenta que muitos pedidos eram feitos à Casa do Povo, registando-se, por exemplo, a fome que grassava na região – chegou a haver distribuição de alimentos por parte da Casa do Povo. Havia intervenção da Casa do Povo nas questões do emprego, refere a importância de se ser sócio.
O terreno para a construção da sede foi doado pela Casa Cadaval em 1957 ou 1958. Vítor Lucas encontrou um primeiro projeto, em 4 volumes, assinado pelo engenheiro António José D’Ávila Amaral, que tinha uma fachada diferente “muito pomposo, seria enorme”. Este estudo, que incluía auditório e consultório médico, não avançou. Posteriormente, o projeto definitivo vem a ser feito pelo arquiteto António Lino, que era amigo da marquesa e tinha ligações à Casa Cadaval. Foi responsável por outras obras em Muge, como a ampliação do Palácio Cadaval, a casa do administrador da Casa Cadaval, a fábrica de descasque de arroz. Ainda é vivo um pedreiro que trabalhou com António Lino, tem mais de 90 anos, que se recorda de situações com o arquiteto no desenho das casas do bairro de trabalhadores. Vítor Lucas acredita que houve muita influência da Casa Cadaval, da marquesa, que estava ligada às artes e à música, para que este edifício com esta dimensão se tivesse feito em Muge.
No estudo de António Lino pensou-se criar um posto de assistência infantil, que acabou por não ser construído por falta de recursos financeiros. Também não se construíram as bancadas para o campo da bola, que se planeavam adossar à reentrância na fachada lateral. A estimativa orçamental da obra foi de 573 contos.
Embora não se recorde inauguração porque nessa altura tinha 5 anos, lembra-se dos ensaios de teatro do pai, que também foi encenador, que o levava. Mais tarde, na sua juventude, Vítor Lucas também fez teatro. Os ensaios de música e teatro decorriam à noite, e lembra-se de ir com o pai buscar as raparigas a casa, que não podiam sair sozinhas. Havia muita atividade cultural. As instalações também incluíam um café e uma sala de televisão, e zona para os ensaios da banda. Chegou a haver um consultório médico nos anos 60, nas salas onde agora se vai instalar o Centro Interpretativo dos Concheiros de Muge. Ainda existe algum mobiliário especialmente desenhado para a Casa do Povo.
A Casa do Povo entrou em declínio em 2010-2011, mantendo o futebol. Afirma que os jovens perderam o interesse pela coletividade, "hoje é tudo online". Com o encerramento do café, ficou apenas o posto dos correios, que substituiu o que existia noutro edifício (inaugurado em 1961), que acaba também por deixar de funcionar. A instituição acaba por entrar em insolvência e fica com uma dívida. A partir de 2015, criou-se uma comissão administrativa, que não conseguiu resolver o problema. Assim, Vítor Lucas empenhou-se, com outros, para salvar o património – que, apesar de ter sido entregue pelo Estado à coletividade, entendiam que era público. Em 2018 arranjou uma equipa, saldaram as dívidas em dois anos, agora está tudo legalizado. Fizeram muito trabalho de manutenção do edifício, "isto tinha infiltrações, já foi tudo pintado". Entendem que o espaço deve ter outro desígnio: acolhem exposições de artistas locais, fazem recolha de fotografias antigas, sempre envolvendo a comunidade. Em 2022, concluiu-se um processo em que o edifício passou para a tutela da Câmara Municipal, sendo cedido à Casa do Povo, não podendo a câmara alterar os fins culturais destinados às instalações. A Casa do povo continua a ser uma associação, com sócios e pagamento de quotas.
Reativaram o jornal O Mugense, que tinha sido criado em 1975 e teve uma vida breve; hoje passou a regime de trimensário, vocacionando-se a questão cultural, da história e tradições.
Atualmente, coloca-se o problema da manutenção de um edifício de enormes dimensões e o facto de apenas estar aberto algumas vezes ao público. Surgiu a ideia de criar um núcleo museológico, tendo-se laçado o desafio á Câmara Municipal, dado que a freguesia tem muita história. Os concheiros de Muge são dos maiores da Europa, dos mais importantes do Mesolítico, estão há c. 10/15 anos a ser estudados por investigadores da Universidade do Algarve, que no verão trazem as suas equipas. Evoluiu então a ideia de integrar no edifício um centro interpretativo dos concheiros de Muge, que se planeia terminar até setembro 2025, para aproveitar o espaço existente e dinamizá-lo. Vai fazer-se também um laboratório de arqueologia. Fizeram uma rampa de acesso ao edifício há 5 anos, com calcetamento também. Relatou algumas dificuldades na manutenção, por exemplo, em arranjar serralheiros que façam a recuperação, mesmo que com bom pagamento.
O ponto central do edifício é o salão, que recebeu novas cadeiras no final dos anos 90, o que fez com que se perdessem quase 100 lugares (originalmente tinha perto de 500 lugares). Foram também mudados os panos do palco. Continuam a ser feitos espetáculos diversos. A exposição de desenho que está no salão é aberta ao fim-de-semana, durante uma hora. Ou seja, as atividades não são tão regulares como antigamente. Por trás do palco há dois camarins e instalações sanitárias. Deixou de haver grupo de teatro de forma regular em meados dos anos 80. Antes, o salão enchia para as peças. Também chegou a servir para sessões de cinema ao fim-de-semana, desde o final dos anos 60, pois não havia outra sala no concelho. As coisas mudaram a partir dos anos 80.
A partir do palco há acesso à régie. Conserva-se a máquina de projetar e um conjunto de bobines. Recorda-se que as bobines eram trazidas nos autocarros da Setubalense, e vinham com cartazes para ser distribuídos pelas tabernas.
A documentação da Casa do Povo está depositada (inclui livros de registo, fichas de sócios, licenças cinematográficas, etc.), e planeia-se apoio dos técnicos da Câmara Municipal para catalogação e tratamento.
Menciona que há uma parte do edifício feita em betão pré-esforçado, incluindo as asnas do telhado, que pudemos observar. O chão é original. Chama a atenção para o pormenor da iluminação a partir da sanca.
Em 1979 acrescentou-se um corpo ao edifício, para ampliação. Havia muitas atividades, era necessário haver secções. Houve nessa altura um projeto para acrescentar um piso ao edifício, que foi chumbado pela câmara. A sociedade columbófila está neste anexo desde 2012, mas existe há 70 anos, recebeu a designação em 1954; foi feito um protocolo de cedência do espaço enquanto a coletividade existir. Também recuperaram as instalações, que estavam degradadas (tudo pertence à Casa do Povo). O anexo está adossado à parte antiga, que termina num alpendre. Foi feito para atividades várias (banda, bailes, festas, gabinetes...). Há passagem para a zona do palco do salão. O espaço da sociedade columbófila é alugado para as mais variadas festas e celebrações (passagens de ano, carnaval, bailes, encontros de lares, etc.). Já recebeu uma assembleia municipal, conferências.
O pavilhão desportivo foi inaugurado em 1969. O terreno foi cedido pelo administrador da Casa Cadaval à FNAT. O pavilhão é "igual ao de Salvaterra, ao de Santarém, ao de Coruche, ao da Chamusca." Na zona exterior, há um barracão anexo, que vai funcionar como depósito arqueológico do concelho. Foram feitos uns balneários em 1974, nunca terminados, na zona onde se tinha planeado o posto de assistência infantil. O pavilhão foi recuperado, pois estava fechado há mais de 20 ou 30 anos. Colocaram palas móveis para tapar as frinchas, e poder circular o ar, com rede metálica, para não entrarem pássaros e proteger da chuva. Foram feitos investimentos pela câmara municipal na recuperação, que só terminou em 2023, quando o pavilhão reabriu. A posse é também do município. As cores azul e amarelo no interior são as cores do município, é igual no pavilhão de Salvaterra.
O pavilhão continua a ser usado para treinos, por exemplo seleção de andebol. Há uma forte tradição na zona, há equipas femininas e masculinas. Também há tradição de futebol de salão. Também se jogou vólei, ténis, quando era miúdo. Recorda-se de alturas em que no pavilhão tocavam bandas famosas, que vinham da margem sul, enchiam o espaço, e havia bailes, festas de fim de ano, ainda antes do 25 de abril. Recorda-se que antes da inauguração, talvez em 1968, o pavilhão ainda não tinha telhado e caiu a estrutura, veio com o pai, que era carpinteiro, ver como resolver. Há memória de um barulho tremendo, mas não estava ninguém na obra, houve uma falha na montagem.
A recolha e a sistematização deste testemunho oral foram elaboradas por Ana Mehnert Pascoal, com base numa conversa informal mantida em janeiro de 2025.
Para citar este trabalho:
Ana Mehnert Pascoal para Arquitectura Aqui (2025) Conversa com Vítor Lucas, Muge, Salvaterra de Magos. Acedido em 06/09/2025, em https://arquitecturaaqui.eu/pt/documentacao/notas-de-observacao-ou-conversacao/61705/conversa-com-vitor-lucas-muge-salvaterra-de-magos