Casa do Povo de Beringel
Conjunto de documentação solta, organizada dentro de papel branco. Contém correspondência e relatórios relativos a visitas de inspeção à Casa do Povo de Beringel, Beja, pela Direção-Geral do Trabalho e Corporações / Inspeção dos Organismos Corporativos, entre 1946 e 1960.
Identificação
Análise
1951.02.21 – Em ofício dirigido ao Delegado do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência (INTP) em Beja, o presidente da Assembleia Geral da Casa do Povo de Beringel Felício António Ferro de Mira expõe a situação difícil em que se encontra a massa associativa da instituição, gizando um retrato incisivo da sua situação económico-social e vulnerabilidade em meados do século XX:
“(...) a densidade populacional da área desta Casa do Povo é elevadíssima por unidade de superfície em relação a todas as outras ao sul do Tejo, pois atinge 140 habitantes por km2.
A classe mais numerosa da população desta área é a classe rural.
Esta Casa do Povo tem inscritos 912 sócios efectivos.
Cerca de metade aproximadamente destes nossos associados são alguns ceareiros [sic], isto é trabalhadores rurais que não trabalham por conta de outrem e os restantes constituem o quadro permanente das várias casas agrícolas da região.
A outra metade é constituída por trabalhadores rurais que trabalham eventualmente em várias casas agrícolas, a maioria fora da área desta Casa do Povo.
Em virtude da fraquíssima colheita de azeitona passou esta população por uma situação verdadeiramente angustiosa durante os meses de Novembro e Dezembro, época da sua colheita.
A partir de princípios de janeiro começou um excesso de chuvas não permitindo que se pudesse realizar muitos trabalhos de campo, como mondas e vários arranjos de vinhas, que já nessa altura se deviam andar a fazer.
Mercê de uma nítida compreensão de muitos proprietários desta área, que têm procurado por todos os meios ao seu alcance empregar alguns trabalhadores e socorr[ê]-los por meio de esmolas, esta situação se tem vindo mantendo.
Por seu lado a Junta de Freguesia actuando com energia tem procurado dentro dos acanhados recursos de que dispõe desenvolver obras que permitam que alguns dos nossos associados venham angariando os meios de subsistência.
Mesmo procedendo assim, não tem sido possível evitar que cerca de 200 dos nossos associados há aproximadamente 50 dias vagueiem pelas ruas destas povoações pedindo esmola, numa situação verdadeiramente impressionante.
Em meu entender esta situação não poderá manter-se assim, pelo que venho solicitar a V. Exa. se digne interceder junto de Sua Exa. o Senhor Ministro das Corporações e Exmo. Sr. Governador Civil deste Distrito, no sentido de a Junta de Freguesia de Beringel ser dotada com meios que a habilitem a prosseguir nas obras em curso e um subsídio especial de 30.000$00 a esta Casa do Povo, para em estreita colaboração com a Junta de Freguesia desenvolver trabalhos em caminhos vicinais onde possa empregar tantos dos nossos associados que neste momento se veem a braços com a maior miséria.
A meu entender será este o melhor caminho que poderemos seguir evitando assim a organização de sopa através desta instituição, medida que me parece não devermos adoptar.”
Esta exposição do dirigente da Casa do Povo ao representante distrital do INTP, que possivelmente deu origem a uma inspeção ordinária à entidade pelos serviços da Inspeção dos Organismos Corporativos (IOC) realizada em 1951, foi copiada e inserida em correspondência trocada entre a instituição e a IOC em 1959.
1958.01.16 – Relatório da IOC, elaborado pelo subinspetor Alberto Dias Póvoas, respeitante a inspeção ordinária feita por este à Casa do Povo de Beringel em 1957 e transmitindo algumas impressões que configuram, novamente, um retrato sugestivo da comunidade e da instituição (sugestivo também do modo como a Inspeção via então o papel político das Casas do Povo junto das populações), incluindo notas relevantes sobre a construção de novas instalações:
“A Casa do Povo de Beringel é uma das consoladoras realidades da organização corporativa dos trabalhadores rurais alentejanos. Orientada, há alguns triénios, por um homem (o presidente da Assembleia Geral) que vive intensamente, ‘in loco’, os problemas económicos e sociais da lavoura, tem visto aumentar, de ano para ano, a eficiência dos seus serviços e o seu prestígio local e regional. (...)
A instituição não possui ainda as instalações que merece e a sua actividade, tanto em Beringel quanto em Trigaxes [sic], plenamente justifica. Contudo, estão dados os primeiros passos no sentido de as conseguir. De facto, o imóvel onde funciona faz parte do seu património desde 1953 e é no terreno que ele ocupa que será construída a nova sede associativa, cujo projeto já está elaborado e parcialmente pago.
Também o importante núcleo populacional de Trigaxes terá um dia uma delegação com instalações apropriadas. Em 1955 foram adquiridos o terreno e o projecto do edifício a construir para esse efeito. (...)
A população associativa está predominante dividida pelas aldeias e ‘montes’ das freguesias de Beringel e Mombeja, mas a Casa do Povo abrange também (alvará de 5 de Março de 1952) algumas secções da de São Brissos. Os centros habitacionais mais importantes são Beringel, Trigaxes e Mombeja, onde um dia deverão ser postos a funcionar serviços descentralizados da sede associativa (médicos, biblioteca, recreio, etc.).
A inscrição dos sócios efectivos faz-se, já há anos, apenas mediante declaração espontânea dos interessados (...).
Entre os ‘sócios voluntários’ há alguns anos que foram admitidos aos 16 anos de idade. Segundo o presidente da Assembleia Geral, a sua admissão obedeceu aos propósitos de ‘educá-los corporativamente’, logo no inicio da sua vida profissional, e de protege-los contra os riscos que, ao lado dos pais e dos irmãos, correm nos trabalhos da lavoura. (...)
Apesar de não possuir ainda a sede que necessita, para poder desenvolver, como convém, certas modalidades da vida associativa, tais como o recreio, a cultura e a convivência, a Casa do Povo tem grande frequência nas épocas em que o tempo e o trabalho agrícola o permitem. (...)
Em matéria de previdência e assistência, a Casa do Povo possui um valioso esquema de modalidades facultativas, muito semelhante ao das demais do distrito, e que, com as obrigatórias, forma um conjunto que na verdade protege os sócios efectivos e mais beneficiários na doença e na invalidez e contribui para o revigoramento da grei, por meio do estágio periódico de crianças na Colónia Balnear de Vila Nova de Milfontes.
(...) Sem que esse facto diminua o mérito da actuação dos dirigentes e do escriturário, a Casa do Povo, seguindo aliás o exemplo de muitas outras, afastou-se há anos da orientação estabelecida pelo Decreto-Lei n.º 30.710 [de 29 de agosto de 1940, que estabeleceu a nova organização das Casas do Povo], quanto à obrigatoriedade da inscrição dos trabalhadores rurais, substituindo-a pelo regime de inscrição voluntaria. Este regime deu bons resultados numéricos, mas deixou certamente fora da instituição muitos imprevidentes e ignorantes, a quem a obrigatoriedade poderia evitar o mal, bem pior, da falta de assistência na doença.
Sugere-se, em sua substituição, um sistema que respeite a lei e simultaneamente pretende defender os interesses dos imprevidentes, sem aumentar o recurso a medidas judiciais de coerção.”
1960.01.12 – Relatório de inquérito à Casa do Povo de Beringel é apresentado ao inspetor-chefe dos Organismos Corporativos, tendo como motivação de fundo uma exposição dirigida por antigo dirigente da Casa do Povo ao ministro das Corporações e Previdência Social. Entre as acusações feitas por aquele à direção da entidade então em exercício inclui-se uma referência relevante ao processo de projeto e construção do novo edifício-sede, em curso em 1959:
“Tendo resolvido demolir o edifício da Casa do Povo e construir outro não ter dado conhecimento aos sócios, não ter exposto em público o ante-projecto, nem colhido sugestões.”
Segundo o relator, “Quando da [sua] visita (...) o esboço do projecto da nova sede, encontrava-se exposto num quadro existente na secretaria e por cima dum armário. Anteriormente já o havia estado na antiga sede.
Quanto a sugestões para a construção do edifício, a direccção não tem que ouvir os sócios, mas sim os Serviços que superintendem nesse assunto.”
Relativamente à mão-de-obra utilizada na operação em curso, que incluiu associados da instituição, refere-se também a seguinte queixa do ex-dirigente:
“Na demolição da antiga Casa do Povo só foram empregados os mesmos cinco ou seis sócios, apesar de nessa época o número de desempregados ser bastante elevado.”
O relator comentou, algo ambiguamente: “Dada a natureza do trabalho não podiam nela ser utilizados quaisquer indivíduos, devido ao risco que corriam. Contudo, todo aquele que se dirigiu a pedir para ser utilizado na demolição, foi atendido; mas como o trabalho era daqueles que não admitia[m] ‘ralenti’, teve poucos concorrentes.”
Para citar este trabalho:
Arquitectura Aqui (2024) Casa do Povo de Beringel. Acedido em 18/01/2025, em https://arquitecturaaqui.eu/documentacao/processos/54477/casa-do-povo-de-beringel