Conversa com Membros da Direção da Universidade Sénior de Peniche
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Registo de conversa mantida por Ana Mehnert Pascoal com Isabel Costa, Clara Cesário e Susete Laranjeira, membros da Direção da Universidade Sénior de Peniche, a 14 março de 2025, a quem muito agradecemos as generosas partilhas.
Caracterização social e económica de Peniche
O concelho tem aproximadamente 30.000 habitantes, número que possivelmente tem vindo a crescer nos últimos anos com a vinda de estrangeiros, como brasileiros. Muita gente trabalha no porto e na parte agrícola. Há também muita gente mais velha, na idade da reforma, que vem morar para o concelho (franceses, ingleses, espanhóis).
Houve vagas de emigração, sobretudo para França, nos anos 60/70, mais notórias a partir das zonas de campo do concelho, pois as pessoas ligadas ao mar “não se aventuravam tanto”. Havia trabalho na pesca e nas fábricas de transformação do peixe. Houve crescimento durante a II Guerra Mundial, com a abertura de fábricas (também espanholas), para produzir conservas para enviar para as frentes de guerra. As empresas traziam pessoal, e construíam alojamentos junto às fábricas para os trabalhadores. Há muita população de Peniche com origem algarvia, de Viana do Castelo, Nazaré, Figueira da Foz, proveniente dessa época de investimento na indústria. O avô de Isabel veio para Peniche da Nazaré para construir casas. Os barcos de pesca não ficavam sempre em Peniche, alguns deslocavam-se ao Algarve, à Nazaré (era mais perigoso porque não havia porto de pesca), à Figueira da Foz, durante semanas, e depois traziam pessoas que acabavam por se fixar em Peniche. O Bairro do Fialho, que já não existe, foi criado para os trabalhadores da Fábrica do Fialho, que vinham do Algarve (era uma comunidade fechada). De Peniche não saíam barcos para ir a bacalhau, pelo que havia alguns pescadores que iam à Nazaré para esse fim.
Peniche continua a ser a primeira lota do país em termos de quantidade de valor feito (não de quantidade de pescado). Atualmente, o setor terciário ultrapassa a indústria, pois fecharam praticamente todas as fábricas.
Agora há muito turismo, houve investimento no alojamento local, também por causa do surf (embora os surfistas não frequentem as praias da vila), o que afeta por exemplo a afluência aos restaurantes no verão.
Universidade Sénior de Peniche
A Universidade Sénior foi criada há 18 anos, fundada pelo professor Mariano Calado. Instalou-se no edifício da Associação de Educação Física, Cultural e Recreativa Penichense há cerca de 14 anos. Utiliza parte do edifício a troco de um donativo para manutenção do edifício e sobrevivência da associação, que foi criada com carácter sobretudo cultural (faziam bailes, por exemplo, no salão: “no primeiro baile, nos anos 60, ainda não estava o chão colocado, estava em cimento”). Anteriormente, funcionou na sede Junta da Freguesia da Conceição, que hoje já não existe (apenas há uma freguesia em Peniche).
A Universidade Sénior tem alguns alunos estrangeiros (c. 12), de língua inglesa e francesa, mas conseguem fazer-se entender. Há muitos alunos portugueses que foram emigrantes em França, o que facilita o contacto com os franceses.
Fica em Peniche de Cima, perto da Escola do Filtro (escola n.º 2). Era exclusivamente para pescadores, mas hoje em dia isso já mudou. As casas já foram sendo compradas e modificadas.
Neste bairro havia distinção conforme a função. As traineiras eram compostas por mestres (tinha função de governar, era o responsável), contramestres (tomava conta do leme) e chauffeur (tinha a seu cargo o motor) – estes eram os 3 níveis superiores; depois havia os camaradas (faziam todo o tipo de trabalho) e os moços (iam para a lancha puxar a rede, corriam mais riscos). No bairro, o maior aglomerado era para a companha (os camaradas). Mais tarde, depois de este núcleo estar construído, construíram habitações maiores para os mestres. Ou seja, havia diferenciação do tipo e dimensão de casa consoante a função.
Quando traziam o peixe, tinham autorização do mestre para retirar determinado número de cabazes, dependente da carga, para vender sem ser à lota (“à candonga”), cujos lucros serviam para dividir por toda a companha (com distinção de valores conforme a função). Havia muita gente do concelho que, ao fim da tarde, se deslocava a Peniche para vir comprar peixe (a essa hora do dia, era peixe grosso).
Casa dos Pescadores / Edifício da Segurança Social
Há memórias da assistência médica no edifício, há c. 60 anos. Os marítimos eram todos sócios da Casa dos Pescadores. Havia um enfermeiro permanente, funcionava todos os dias. Os médicos atendiam na Casa dos Pescadores e também no Hospital antigo de Peniche. Também se faziam pequenas cirurgias, pois o diretor clínico, o Dr. Fortes, era cirurgião. Susete, que trabalhou na Casa dos Pescadores, chegou a considerar que os pescadores eram os trabalhadores com mais direitos do país, pois havia acordos para tratamento e cirurgias com hospitais foram do concelho.
Tinha maternidade noutro local, junto à escola de Peniche de Cima (recordam-se da enfermeira Aurora, uma figura relevante como parteira no hospital, e da D. Alice na maternidade), creche (perto da Igreja da Ajuda), escola de pesca onde é hoje sindicato dos pescadores, e a casa de trabalho feminina (aprendia-se a cozinhar, bordar, e a fazer rendas de bilros).
A Casa dos Pescadores tinha outras funções, havia, por exemplo, um rancho com os filhos dos pescadores, que ensaiava numa sala no rés-do-chão.
Havia uma cooperativa dos pescadores com supermercado. Também havia farmácia com descontos, e faziam-se vales (um regime de empréstimos).
Os capitães dos portos eram sempre presidentes das Casas dos Pescadores. Susete recorda-se do Comandante Tenreiro.
Recordam-se do 1.º de maio após o 25 de Abril de 1974, em que os pescadores tomaram o edifício, foram buscar a chave e estavam convencidos de que havia um saco azul – mas não descobriram irregularidades. Levaram tudo para o sindicato: um carro, uma biblioteca riquíssima e algum mobiliário. Com a vinda da segurança social, os arquivos anteriores foram todos para Leiria (acreditam que foi destruído).
Após o 25 de Abril, um dos comandantes, presidente da capitania, provou o que os pescadores descontavam para a Casa dos Pescadores (quinhões e percentagens), alegando terem direito à reforma embora não descontassem diretamente para a Segurança Social. Tinha depositado todo o dinheiro no banco em Peniche como demonstração.
Bairros da CAR
Após o 25 de Abril, veio população das colónias que foi habitar para a Fortaleza, aproveitando-se as antigas celas. Ficaram lá durante anos. Depois fizeram bairros para alojar essa população, os chamados bairros da CAR.
Bairro de Santa Maria (Bairro da Caixa)
O bairro da Caixa já estava em construção quando aconteceu o 25 de Abril, e depois as obras pararam. “Mas havia tanta falta de habitação que as pessoas ocuparam as casas, e elas próprias as acabaram”. Foram ocupadas por pessoas de Peniche.
O bairro foi inaugurado por Américo Tomás, antes do 25 de Abril. Susete fez todos os contratos de habitação para os inquilinos do bairro, pois eram todos pescadores e o processo seguiu através da Junta Central das Casas dos Pescadores. As casas eram arrendadas, mas, entretanto, foi possível, para quem quis, comprá-las.
O Bairro Luís de Camões, como o da Caixa, também era do tempo do Salazar (ou seja, implementados durante a ditadura). O Luís de Camões era do Fundo de Fomento da Habitação, mas era gerido pela câmara municipal.
Bairro Peniche III / Bairro Arco-Íris
São 3 blocos, originalmente distinguiam-se pelo poder económico dos habitantes. O conjunto foi construído após a queda da ditadura, junto dos correios. O conceito era “habitar as casas como os russos”, várias famílias para o mesmo apartamento. O objetivo era alojar pessoas com fracos recursos, também serviu para alojar “pessoas de África”. As casas são muito grandes, com vários quartos. Mas um dos prédios, onde hoje funciona o serviço das Finanças, demarca-se pelo maior poder económico dos moradores. Um dos outros blocos integra uma associação de acolhimento de crianças em situações de risco. O conjunto começou a ser habitado há c. 40 e poucos anos, no tempo do presidente da câmara Carlos Mota.
Escola n.º 2 (Escola do Filtro) / Escolas Primárias
Recordam-se da dureza no inverno, fazia muito frio. Uma das intervenientes frequentou a escola quando era apenas para meninas, e outra frequentou a escola com ensino misto (juntavam turmas de vários anos). Ambas não completaram o ensino primário nessa escola, mas na escola n.º 1, a maior e mais antiga de Peniche.
A dada altura, as várias escolas de Peniche foram numeradas. Recentemente, recuperaram-se os nomes pelas quais eram conhecidas: Escola n.º 1 (Escola Velha); Escola n.º 2 (Escola do Filtro, devido à Torre de Água); Escola n.º 3 (Escola Nova, em comparação com a Escola Velha); Escola n.º 4 (Escola do Alemão, em homenagem a um alemão que abriu uma fábrica de conservas na zona durante a II Guerra Mundial, “avô do Herman José”); Escola n.º 5 (Escola da Central, junto da Central Elétrica). Todas as escolas continuam a ser utilizadas e a funcionar com esse fim, há alunos suficientes.
Recordam-se da vacinação da BCG no edifício, que era pequeno. “Há 40 aos atrás davam-se lá consultas da Segurança Social”, mas não têm memória quando deixou de funcionar como dispensário. O edifício esteve inativo e fechado durante muito tempo, pertencia ao Ministério da Saúde. O espaço foi cedido à Câmara Municipal. Já funciona como jardim de infância há muitos anos, uma das colegas da Universidade Sénior trabalhou lá como educadora.
São edifícios contíguos. No corpo por trás do hospital funcionam as consultas externas (não é centro de saúde). O hospital não tem as valências todas (não há consultas de todas as especialidades, já não há cirurgia, embora haja internamento), e no corpo construído para centro de saúde há vários especialistas externos, que depois encaminham para os serviços respetivos nas Caldas da Rainha. Numa emergência, são encaminhados para Torres Vedras ou Caldas da Rainha, ou eventualmente para Lisboa.
O hospital não é antigo, mas não funciona como tal. Há alguns anos, no final dos anos 90, fizeram um cordão humano à noite para manifestação contra a iniciativa de encerramento do hospital. Um argumento para que o hospital não encerrasse foi a necessidade de acudir com urgência aos sinistrados do mar.
Havia necessidade de se construir este hospital, pois o outro era antigo, pequeno e não servia as necessidades da população.
Uma das intervenientes lembra-se de uma ampliação do mercado, era mais pequeno.
As pessoas que vinham vender vinham das aldeias, sobretudo de Ferrel, aproveitando que tinham excesso de produção. Vinham pela praia com os burros carregados. O mercado funcionava todos os dias, hoje é mais ao sábado.
No andar superior morava a chefe dos correios. Havia muitos funcionários. Havia 3 guichets e 2 cabines telefónicas. Não têm ideia quando os serviços transitaram para o novo edifício, talvez há coisa de 30 anos. Agora parece que o edifício está fechado, tem uma espécie de armazém com máquinas dos telefones.
Terá sido fundado nos anos 50, por iniciativa do Padre Bastos, que se tinha formado e vinha do Estoril. O lar também tinha apoio a crianças desfavorecidas, e mais tarde teve creche.
Vendiam-se cabazes de peixe para apoiar o Lar de Santa Maria.
Outros assuntos
O bairro mais típico de Peniche é o Visconde, um bairro de ruas estreitas, junto do mar. Após o 25 de abril havia muita necessidade de habitação, e o então presidente da Câmara Municipal de Peniche, Carlos Mota, autorizou quem quisesse a construir casas (e regime de autoconstrução). “Na altura era o bairro dos pobres, mas hoje é um bairro de elite”.
Havia Casa do Povo em Atouguia da Baleia.
A recolha e a sistematização destes testemunhos orais foram elaboradas por Ana Mehnert Pascoal, com base numa conversa mantida em março de 2025.
Para citar este trabalho:
Ana Mehnert Pascoal para Arquitectura Aqui (2025) Conversa com Membros da Direção da Universidade Sénior de Peniche. Acedido em 05/09/2025, em https://arquitecturaaqui.eu/pt/documentacao/notas-de-observacao-ou-conversacao/65021/conversa-com-membros-da-direcao-da-universidade-senior-de-peniche