Testemunho de Margarida Nunes, Miranda do Douro
Identificação
Conteúdo
Conversa mantida com a Margarida Nunes, no dia 21 de abril de 2023, durante um passeio pela cidade amuralhada de Miranda do Douro. Conversa com as investigadoras Catarina Ruivo e Ivonne Herrera Pineda. Agradecemos profundamente o seu acolhimento, apoio e generosidade em falar connosco. O seu contributo foi fundamental para compreender a história social de Miranda do Douro.
Margarida Nunes é licenciada em História e conhecedora da evolução de Miranda pela sua experiencia pessoal e profissional. Seguem-se algumas das informações partilhadas durante a conversa.
Bairro da Terronha
Segundo o seu testemunho, as pessoas que vinham das aldeias para Miranda vinham para a Terronha e trabalhavam na barragem. Lá, nos bairros da Terronha, moravam os barragistas. Eles iam construindo as suas pequenas casas. E a EDP também dava casa aos trabalhadores mais pobres, e conforme iam adquirindo estatuto diferente dentro da empresa, iam para o bairro verde. O bairro da Terronha era a zona mais pobre e chamavam-lhe o "bairro dos índios".
Depois na Terronha mandaram tudo a baixo, demoliram as casas e os terrenos foram vendidos. As pessoas da barragem que estavam na Terronha foram embora, ou para o bairro verde, ou para outras barragens (ex. Carrapatelo). Ela menciona que as casas eram de muito fraca qualidade. Lembra-se que havia algumas casinhas entre o centro de Miranda e a Terronha, e comenta que o bairro da Terronha estava atrás dos montes, e não se via do centro de Miranda.
No bairro da Terronha também fez-se o Bairro da GNR, que mais tarde também foi demolido. Os terrenos deste bairro eram da Câmara.
De acordo com Margarida Nunes, os moradores da Terronha e do centro de Miranda encontravam-se em algums lugares como na missa nos domingos ou nas tabernas de Miranda, onde passavam os trabalhadores da barragem e depois iam para a Terronha.
Os moradores de Terronha trabalhavam na barragem, os homens, e as mulheres trabalhavam nas casas dos engenheiros ou pessoas da cidade. As mulheres também iam levar os almoços aos maridos.
De acordo com as suas lembranças e o testemunho do seu sogro, as pessoas que vieram para a barragem “eram pessoas muito muito pobres”, e provinham de zonas como Braga. O seu sogro, que veio de Póvoa do Lanhoso, dizia “as pessoas mais pobres que ali havia foram as pessoas que vieram para Miranda”.
Ciclo preparatório na Terronha
Foi construido depois do tempo em que havia muita gente na barragem. Segundo o seu testemunho, “era muito longe ir para a escola, porque era de trás de todo este morro”.
Hoje é escola primária próxima do arquivo. A escola básica e secundária é mais longe da cidade muralhada (e foi constuida cerca de 1980).
Casas da rua doutor Valentim Guerra
Este conjunto eram casas para pobres e é composto por duas ruas e três blocos de casas (uma delas já é privada, outras duas são da SCMMD e são arrendadas a famílias com baixos rendimentos).
O doutor Valentim Guerra era um senhor com residência em Sendim e foi deputado em Lisboa.
Quartel dos Bombeiros Voluntários
Margarida Nunes lembra-se dos bombeiros estarem no bar que existe junto à Sé.
Também referiu, noutra conversa, o antigo quartel estar instalado na casa da sua família durante algum tempo.
Ela confirma que o terreno onde acabaram por se instalar os bombeiros era da Câmara Municipal de Miranda. Quando questionada sobre como foi o processo, responde que “foram os Monumentos Nacionais” (os responsáveis por eles terem ido a esse terreno e não a outro).
Bairro Verde
O bairro é composto por blocos compridos que ainda existem, mas a sua presença não se faz sentir como antes. "Eram para aí 10, agora só há 2". São quatro casas geminadas, e no interior da casa, havia três quartos, casa de banho, cozinha e uma sala central.
Margarida destaca que nunca houve um bairro definitivo, como ocorreu em Picote. A construção das casas foi feita à medida que as famílias se mudavam para elas. Antes de ir para as casas do bairro verde, as famílias passavam por um espaço intermédio: "os blocos das pessoas que iam passando dali, para ali".
O bairro tinha o seu próprio mercado: um pavilhão onde recebiam congelados e leite, talho e pão que vinha de Picote. As pessoas do bairro verde e da cidade tinham uma relação mais próxima: “toda a gente se dava bem”, afirma Margarida.
Ela frequentou a escola da EDP, que estava situada por baixo da GNR. A escola infantil era pequena, com apenas duas salas, e havia muitos alunos. Agora não existe mais, foi demolida nos anos 80.
O antigo cinema da EDP foi transformado em um mini-auditório – o cinema foi cedido à CMMD. Margarida lamenta que só cabem lá dentro 60 pessoas e conclui “Às vezes em Miranda pensa-se demasiado pequeno”.
Tribunal
O antigo presidente da Câmara decidiu desmantelar o Paço Episcopal, onde estava planeado construir o tribunal e o hospital. Todas as pedras do Paço foram reutilizadas para construir os dois edifícios do hospital e do tribunal.
Mercado Municipal
O mercado municipal foi construído muito tardiamente e nunca foi aproveitado.
Lar de Terceira Idade
Algumas pessoas sentem desilusão por este edifício. É o caso de Margarida, que chama de "mamarracho" a parte mais recente do lar. Esta zona foi inaugurada nos anos 90, é uma zona de quartos e também diz que é a melhor do equipamento. Nota que não tem vista para a paisagem, porque está em frente à muralha.
Margarida lembra-se que o lar funcionou bem inicialmente e que as pessoas gostavam. Atualmente, o lar abriga apenas 60 utentes e não há condições para acolher mais residentes.
Hospital
O antigo hospital, localizado em frente aos lavabos públicos, foi reutilizado como Unidade de Cuidados Continuados. O hospital manteve as suas valências e foi considerado o melhor equipamento para a comunidade. Como Margarida afirma, o mais importante que deixou a EDP “para nós para nós mirandeses foi o hospital. Tínhamos todas as valências neste hospital”.
Correios e Salão Paroquial
Na casa dos senhores Pereira, adquirida após o seu falecimento, foi construído um auditório da Câmara, que atualmente não está utilizado. A Câmara pediu à casa paroquial que lhe cedesse terreno para construir a Caixa Geral de Depósitos. Além disso, existe também salão paroquial.
Casas dos magistrados
No passado, estas casas foram ocupadas pelo Serviço de Urbanismo, que agora está instalado no antigo liceu. Uma dessas casas está emprestada ao museu, que está a trabalhar nas suas obras, e contém o espólio.
Escola
Lembra-se do frio intenso que senta-se dentro da escola. Era necessário usar uma escalfeta para se manter aquecidos durante as aulas.
Liceu
Originalmente, o liceu era o colégio de São José. Com o tempo, passou a ser propriedade do Ministério da Educação, dono dos terrenos onde está instalado. Atualmente o edifício é da Câmara Municipal.
Margarida comenta que andou no liceu desde o 7º ano, e entrou em 1975 (refere ao ano do 25 de abril).
Margarida descreve o liceu: cada duas janelas é uma sala. Naquela época, havia três entradas: duas portas laterais, uma entrada feminina e masculina, e uma entrada exclusiva para os professores. Apesar da separação por gênero das entradas, as turmas eram mistas. "Nestes muros", recorda-se Margarida, "nós juntávamo-nos todos aqui. Quando dava o primeiro toque, uns por baixo, uns por cima”.
Outras questões- Património
Em Miranda, uma questão que preocupa é a destruição do património. "Nós não podemos morrer aqui nesta parede", diz apontando para uma pedra da muralha. "Queriam preservar e acabaram por não preservar, acabaram por deteriorar. A cidade está deteriorada e só o devemos aos Monumentos Nacionais". “E deixaram-se cair muitas casas, deixou-se fugir muita gente, só por não deixar construir”.
“A força dos Monumentos Nacionais, da Direção Geral da Cultura do Norte, da CCDRN, a vontade é muito maior, eles são muito mais, têm o poder, e dizem não”.
Outras questões- Antiga feira
A antiga feira de Miranda também é um ponto de interesse. Originalmente, era um espaço aberto ao ar livre, “não havia vidro, era tudo aberto”, mas agora está ocupado por serviços da Câmara Municipal.
Continua a haver feira todos os meses, no dia 1. Infelizmente, a feira não atrai mais as pessoas locais. Os comerciantes que a frequentam são de outras partes, antes vinham de aldeias próximas. Também vinham pessoas da Terronha, do bairro verde, da cidade, de aldeias...
Outras questões- UTAD
O núcleo da UTAD funcionou no liceu. Menciona um curso de antropologia e um curso de dinamização social entre as ofertas de formação.
Lamenta que o esforço feito para trazer um polo universitário tenha sido desaproveitado. “Alguém conseguiu que o polo da universidade viesse para Miranda do Douro. Tudo isso devemos um bocado ao Dr. Julio Meirinhos. E depois veio uma outra Câmara que deixou fugir o polo universitário”.
Lembra-se que havia cerca de 300 alunos, que davam muito movimento à cidade. Relativamente ao desenvolvimento de Miranda, “podia ter sido uma revoluçãozinha na altura”.
Outras questões- Miranda
“Eu digo assim, em Miranda do Douro houve duas revoluções industriais, foi a vinda da barragem e a abertura da fronteira. Miranda se não tinha sido a vinda da barragem não era nada e se não tinha sido a abertura da fronteira, nada era”.
Quando os barragistas foram embora, Miranda caiu. A barragem deixou de ter qualquer significado. O significado que teve foi porque se avançou um bocadinho.
Margarida salienta que não sente distância em Miranda do Douro, é possível ir e vir ao Porto e mesmo a Lisboa no mesmo dia.
Outras questões- Saúde
Em contraste com o serviço anteriormente disponível no hospital, o atual centro de saúde fecha às 21h e é preciso ir a Bragança para cuidados de emergência.
A recolha e a sistematização deste testemunho oral foram elaboradas por Catarina Ruivo e Ivonne Herrera Pineda, com base numa entrevista realizada em maio de 2023.
Para citar este trabalho:
Arquitectura Aqui (2024) Testemunho de Margarida Nunes, Miranda do Douro. Acedido em 31/10/2024, em https://arquitecturaaqui.eu/documentacao/notas-de-observacao-ou-conversacao/22315/testemunho-de-margarida-nunes-miranda-do-douro